segunda-feira, 15 de julho de 2013

IEMANJÁ

IEMANJÁ

Iemanjá, Senhora Soberana e Princípio Gerador
(e um pouco da sua presença em minha vida e seus significados) por Cristiane Gonçalves da Silva – 2013
Ilustração Cecília Panipucci (artenaquitanda.blogspot.com.br)
Ilustração Cecília Panipucci (artenaquitanda.blogspot.com.br)
Acho que foi em meados dos anos 80 que a figura de Iemanjá entrou na minha vida. Entre medo e curiosidade, eu costumava cercar as festas de Iemanjá que aconteciam ao longo da praia de Solemar, limite entre Praia Grande e Mongaguá.
Uma figura linda, vestida de azul, dona do mar. Imagem que me sugeria ares de poderosa princesa e que ficava na minha mente quando eu voltava para a casa de veraneio onde ficava com minha família durante as férias de verão na infância e adolescência.
Algumas vezes, ao parar para observar estas festas na areia, acabava recebendo “recados” acerca de uma tal mediunidade que eu ignorava. Nesta época também, criei uma barreira forte para a religião que cultuava Iemanjá, Pombo-giras, Baianos e outros seres que eu pouco conhecia.
O mar, entretanto, sempre esteve em mim. Mesmo quando fiz esforço de não encarar os sinais que mostravam meu futuro no Axé. Prometi, sem entender porque, que até completar 36 anos, deveria passar as viradas de ano, perto do mar para poder revigorar, agradecer e pedir, sentindo-me como que protegida e afagada por uma imensidão de beleza e mistério. Estar na água e, especialmente nas águas salgadas, sempre foi para mim um carinho, um refresco, um desejo, uma delícia . Sentir o corpo ser lambido pelas águas verde-azuladas ou azul-esverdeadas sempre trouxe-me uma vontade de vida e renovou a vontade de ser.
E os anos foram sendo vividos. Na formação profissional durante a vida universitária, acabei por revisitar minha ligação com a religião e, particularmente, com as religiões afro. Neste processo de compreender, eu lançava minha curiosidade com outros olhos: do interesse científico.
Entretanto, não tardou para que o encantamento com mitos, histórias, terreiros, atabaques, pontos, danças e tudo mais tomassem uma proporção imensa. Não tardou a enfronhar-me na construção da Casa de São Lázaro, mesmo resistindo em assumir “ser médium” ou ter uma religião. A vida trouxe desafios para que eu enfrentasse e foi Iemanjá, na força de Pretos, Pretas, Caboclos e Erês que me ampararam na passagem de um dos amores da minha vida, meu irmão de sangue, Eduardo.
Também nesta época de conversão religiosa apareceram as dúvidas: seria eu filha de Iemanjá ou de Iansã? Meu coração nunca teve dúvidas acerca da Dona de minha cabeça. A ligação com a Moça bonita de azul aumentou a cada nova apreensão que eu pude ter, seja como estudante, curiosa, aspirante a macumbeira ou acompanhante de Pai de Santo em formação. E a Senhora grande, negra e soberana que via representada nos terreiros de Candomblé tornou-se uma presença forte nas minhas intenções de fé. Iansã guerreira, poderosa, determinada e resolutiva estava (e está). Mas é Iemanjá que me permite ser.
Senhora das cabeças, Mãe dos Orixás, Senhora das profundezas da alma. Dona absoluta dos mares e oceanos, onde vivem milhares de espécies animais, algumas até hoje desconhecidas da ciência. Dona do princípio natural que permite a vida na terra: a água. Dona das marés. Marés mansas ou marés de tormentas e maremotos que violentamente roubam vidas.
Maternidade e autonomia. Essa Mulher mítica traz para mim o poder de emanar esses dois atributos preciosos em minha vida. Senhora dos mistérios, permite-me fazer viagens em mim mesma, em busca daquilo que me fortalece e em busca de ser alguém melhor. Uma pessoa melhor para minha filha, que representa minha descendência no mundo e me faz reviver o princípio mítico próprio de Iemanjá e ser também melhor para as pessoas que amo e respeito. É quem me dá força para a luta cotidiana por uma vida melhor e por um mundo mais justo.
Assim é Iemanjá em mim. Assim é minha devoção. Deixo aqui, mais abaixo, trechos sobre Iemanjá. Foram retirados de trabalhos que tratam dos Orixás e que marcaram minha vida de distintas formas. Foram escolhidos por que parecem traduzir estas conexões filha-Mãe e os princípios vitais que significam para mim ser filha de Iemanjá.
E que 02 de fevereiro de 2013 traga vida. Vida em plenitude, que pela consciência de homens e mulheres, possa renovar-se e continuar, em ciclos. Que se respeite o mar, as relações entre as pessoas, a diversidade cultural. E que a busca pela igualdade, na Terra, seja um princípio gerador que nos une.
“A água pode percorrer qualquer caminho, seu destino é sempre algo improvável. Mesmo que a represem, sua imensidão cobrirá qualquer obstáculo, dando-nos a ideia do seu real poder. A água existe, e esse existir aparece triunfante no nome de Omínwá . O fenômeno do existir é acompanhado da certeza de que o ser humano ocupa imaginariamente o espaço das águas e pode ser tão imenso quanto elas, que o compõe. Portanto, chamar-se Omítaye ( a água é louvada na Terra) também significa aprofundar-se num espaço infinito e fazer emergir a natureza íntima de Iemanjá, qual seja, percorrer o universo com suas águas num eterno ciclo, manifestando sua força infinita posto que a água não se esgota. (…) (Vallado, A. Iemanjá: a grande Mãe Africana do Brasil, São Paulo: Pallas, 2001, pág. 147)
Olodumare-Olofim vivia só no infinito,
cercado apenas de fogo, chamas e vapores,
onde nem quase podia caminhar.
Cansado desse seu universo tenebroso,
cansado de não ter com quem falar,
cansado de não ter com quem brigar,
decidiu por fim àquela situação.
Libertou as suas forças e a violência
dela fez jorrar uma tormenta de águas.
As águas debateram-se com rochas que nasciam
e abriram no chão profundas e grandes cavidades
a água encheu as fendas ocas,
fazendo-se os mares e os oceanos,
em cujas profundezas Olocum foi habitar.
Do que sobrou da inundação se fez a terra.
Na superfície do mar, junto à terra,
ali tomou seu reino Iemanjá,
com suas algas e estrelas-do-mar,
peixes, corais, conchas, madrepérolas.
Ali nasceu Iemanjá em prata e azul,
coroada pelo arco-íris Oxumarê.
Olodumare e Iemanjá, a mãe dos orixás,
dominaram o fogo do fundo da Terra
e o entregaram ao poder de Aganju, o mestre dos vulcões,
por onde respira o fogo aprisionado.
O fogo que se consumia na superfície do mundo eles apagaram
e com suas cinzas Orixá Ocô fertilizou os campos,
propiciando o nascimento das ervas, frutos,
árvores, bosques e florestas,
que foram dados aos cuidados de Ossaim.
Nos lugares onde as cinzas foram escassas,
nasceram os pântanos e nos pântanos, a peste,
que foi doada pela mãe dos orixás ao filho Omolu.
Iemanjá encantou-se com a Terra
e a enfeitou com rios, cascatas e lagoas.
Assim surgiu Oxum, dona das águas doces.
Quando tudo estava feito
e cada natureza se encontrava na posse de um dos filhos de Iemanjá,
Obatalá, respondendo diretamente às ordens de Olorum,
criou o ser humano.
E o ser humano povoou a Terra.
E os orixás pelos humanos foram celebrados.
(Prandi, R. Mitologia dos Orixás, São Paulo: Cia das Letras, 2005, pág. 380 e 381)
Iemanjá é dona de rara beleza
e, como tal, mulher caprichosa e de apetites extravagantes.
Certa vez saiu de sua morada nas profundezas do mar
e veio à terra em busca de prazer da carne.
Encontrou um pescador jovem e bonito
e o levou para seu líquido leito de amor.
Seus corpos conheceram todas as delícias do encontro,
mas o pescador era apenas um humano
e morreu afogado nos braços da amante.
Quando amanheceu, Iemanjá devolveu o corpo à praia.
E assim acontece sempre, toda noite,
quando Iemanjá Conlá se encanta com os pescadores
que saem em seus barcos e jangadas para trabalhar.
Ela leva o escolhido para o fundo do mar e se deixa possuir
e depois o traz de novo, sem vida, para a areia.
As noivas e as esposas correm cedo para a praia
implorando a Iemanjá que os deixe voltar vivos.
Elas levam para o mar muitos presente,
flores, espelhos e perfumes,
para que Iemanjá mande sempre muitos peixes
e deixe viver os pescadores.
(Prandi, R. Mitologia dos Orixás, São Paulo: Cia das Letras, 2005, pág. 390 e 391)

“(…) Reina sobre “todas águas do mundo”, doces e salgadas. É, portanto, uma divindade antiga. Deusa das águas primevas que são, conforme Mircea Eliade (1970:165), “fons et origo, matrizes de todas as possibilidades de existência.”
Essa definição parece adequar-se exatamente à figura de Iemanjá. Seu nome significa “mãe dos filhos peixes” (Yéyé Omo ejá). Inúmeros são os descendentes da Rainha do Mar. (…) os peixes de Iemanjá parecem relacionados mais especificamente com o embrião, o germe, as potencialidades infinitas de água geratriz. Ela usa o abebé (…) que representa a fecundidade, e a espada, que, recortando na matéria das origens, separa e multiplica os seres; permitindo o nascimento de indivíduos únicos.
Propiciar a passagem entre potencialidades e realização, e vice-versa, parece constituir uma das funções essenciais de Iemanjá. Sua dança imitando o movimento das ondas, fala de fluidez, de distribuição, de germinação constantemente renovada.”
(Augras, M. O duplo e a metamorfose – a identidade mítica em comunidades nagô, Rio de Janeiro: Vozes, 1983, pág. 157 e 158)