“A morte nasce conosco e conosco caminha por
todos os instantes da vida, mesmo que tentemos ignorá-la”... John
O’Donoghue, escritor irlandês.
Por: Mirella Faur
Do grande tronco indo-europeu faziam parte os vários povos celtas estabelecidos em diferentes lugares do continente europeu.
Considerados pelos romanos como bárbaros valentes, jamais formaram um
império pois lhes faltava uma liderança única, as diversas tribos sempre
guerreando entre si.
Apesar da sua diversidade étnica, entre
os séculos VIII e V a.C. houve uma cristalização da cultura celta com a
uniformização dos sepultamentos (os mortos passaram a ser enterrados com
armas e pertences e não mais cremados), a construção de fortificações
com paliçadas e melhor elaboração dos conceitos e costumes sobre vida e
morte.
A sociedade celta era dividida em clãs e os laços
familiares eram muito valorizados. As mulheres celtas se assemelhavam
aos homens não apenas pela sua estatura e altivez, mas também com
respeito à coragem e participação ativa nas batalhas, conforme comprovam
centenas de relatos de mulheres poderosas e rainhas deificadas como
Boudicca e Maeve.
Os celtas respeitavam profundamente a
Natureza, honrando a Terra e suas criaturas como elos sagrados na teia
da criação e na magia da vida. Esta reverência e o culto de inúmeras
divindades ligadas às forças da natureza mantiveram-se intactos mesmo
depois da romanização das terras celtas e do sincretismo com os deuses
romanos.
Porém, a erradicação e perseguição agressiva e
opressiva da religião pagã aconteceram com a chegada do cristianismo,
que conseguiu impor seus dogmas e proibições apesar da resistência dos
druidas e do povo, principalmente o irlandês.
Para erradicar a
religião pagã e suas tradições os monges cristãos começaram a registrar
lendas, mitos, crenças e costumes com as devidas correções e
inevitáveis distorções, introduzindo elementos e conceitos cristãos.
Mesmo assim, uma boa parte do legado ancestral foi preservada e o
substrato original pode ser distinguido se usarmos um “filtro” corretor,
olhando além das incongruências conceituais e sobreposições cristãs.
Um dos conceitos celtas mais difíceis de compreender e aceitar - pela
nossa cultura cristã e a mentalidade atual - é a associação dos
arquétipos sagrados femininos com a guerra.
Para transpormos
barreiras conceituais devemos conhecer o princípio celta da soberania da
terra, sempre representado por uma Deusa Mãe com características
protetoras e defensoras.
A vida e a sobrevivência dependiam da
terra e por isso ela devia ser preservada e protegida, pois
desrespeitar a terra e a soberania de um povo significava ofender e
ameaçar a própria natureza criadora da vida.
A soberania – o
verdadeiro poder de quem governava e conduzia os destinos de um povo –
pertencia a um arquétipo feminino, a própria Deusa da Terra, com a qual o
rei ou governante devia se casar simbolicamente para garantir a
prosperidade e paz.
O casamento do rei com a Deusa da terra
representava as condições indispensáveis para que a soberania se
manifestasse: respeito, igualdade, confiança, parceria e solidariedade. A
representante da Deusa soberana era uma sacerdotisa ou rainha imbuída
de poderes especiais, que até mesmo podia ser divinizada, como se
conclui das lendas de Macha, Maeve e Boudicca.
Nos mitos
aparece de forma metafórica o alerta sobre as conseqüências da opressão,
violência e exploração da natureza e da mulher com os inerentes
desequilíbrios, a falta de prosperidade e do convívio pacífico.
Em várias lendas, Macha (pronuncia-se Maha) é descrita como uma típica
deusa celta tendo um caráter ambíguo: ora generosa e gentil, ora
terrível e implacável guerreira.
Ela - assim como Maeve – é uma
divindade ctônica, ligada às dádivas da terra e à sua necessária defesa
e proteção. Maeve (ou Medb) representava o espírito feminino arcaico,
existente em cada mulher e que é expresso em grau maior ou menor como
comportamento instintivo, impulsivo, corajoso, combativo, sedutor e
fértil.
Outras fontes citam Macha como sendo uma das faces de
Morrighan, a formidável deusa tríplice da guerra, morte e sexualidade (o
meio natural para garantir a fertilidade).
As faces de
Morrighan chamadas de Morrigna eram conhecidas como: Nemain, o frenesi
combativo que infundia o terror nos inimigos, Morrighan, a “Grande
Rainha” que planejava o ataque e incitava o heroísmo e a valentia dos
combatentes, Macha ou Badb, o corvo que se alimentava dos cadáveres dos
mortos em combate e que era associada aos sangrentos troféus da batalha
(as cabeças decapitadas dos inimigos, consideradas “sua colheita”).
Esta triplicidade também era conhecida com os nomes de Banba, Fotla, Eriu, as ancestrais padroeiras da Irlanda.
A natureza das deusas celtas é multifuncional e com complexos
significados, mesclando elementos ancestrais dos pacíficos povos
pré-celtas (maternidade, fertilidade) com os dos combativos celtas, onde
prevaleciam atributos de guerra, morte e sexo, acrescidos de soberania.
Várias divindades representam uma paradoxal união de extremos: amor e guerra, guerra e fertilidade, guerra e soberania.
Não existe uma deusa do amor no panteão celta, as deidades - deusas e
deuses- simbolizam as forças da natureza e a eterna roda da vida/
morte/renascimento, início/ fim/recomeço, em que os opostos se seguem em
círculos evolutivos e tem o mesmo peso.
Na filosofia celta não
existia vida sem morte, nem paz sem guerra. Cada ser traz em si estes
elementos e pela sua percepção vemos a necessidade do seu equilíbrio,
que pode ser desestabilizado pela supervalorização de uma característica
em detrimento de outra.
Nosso desenvolvimento espiritual
depende da compreensão e harmonização de todos os elementos que fazem
parte do nosso ser. Somente conhecendo a face escura e selvagem e
“domando-a”, poderemos tomar consciência da nossa divina complexidade,
conhecendo assim a verdadeira e completa natureza.
É possível unir as qualidades maternais e femininas com os aspectos guerreiros, os dons da arte, magia e sedução.
Em muitas referências míticas, iconográficas e literárias vê-se a forte
ligação entre as deusas da guerra e a presença de mulheres nas
batalhas.
Indo além das interpretações tendenciosas romanas e
as difamações cristãs, percebemos esta ligação como uma associação
simbólica entre guerra e ritual. Para os celtas a caça era uma atividade
que envolvia rituais para assegurar o sucesso, da mesma forma como as
mulheres celtas vestidas de preto, com os braços elevados e proferindo
maldições contra os conquistadores romanos tinham um forte componente
ritualístico.
As sacerdotisas que atuavam nos campos de batalha
usavam encantamentos para atrair poderes sobrenaturais e direcioná-las
contra os inimigos, fortalecendo seus companheiros para não recuar
perante o inimigo.
Os historiadores romanos descreveram as
mulheres celtas como bruxas ferozes e ameaçadores, altas, robustas, com
pele alva e olhos azuis e longos cabelos ruivos, sacudindo os punhos com
raiva e gritando maldições.
Em outras situações, as mulheres
ficavam com seus filhos na retaguarda e incentivavam seus homens com
gritos e orações para que lutassem melhor e não desistissem.
Das inúmeras mulheres guerreiras, sacerdotisas e rainhas poderosas
sobressaem-se duas famosas rainhas: Cartimandua, dirigente dos
Brigantes, sacerdotisa da deusa Brigantia e Boudicca governante dos
Iceni, que se tornou famosa por venerar a deusa Andraste ou Andarta, a
deusa da guerra citada por várias fontes.
O nome Boudicca ou
Boadiceia se origina na palavra celta bouda que significa vitória. A sua
história é repleta de atos de coragem nas batalhas e crueldade com as
prisioneiras, que eram empaladas vivas e mutiladas como oferendas
sangrentas para a deusa Andraste e uma vingança pelo estupro das suas
filhas e a conquista da terra pelos romanos.
Existe um forte
elo entre Boudicca e Andraste, podendo serem vistas como aspectos de uma
mesma entidade, uma residindo no mundo sobrenatural e a outra sendo uma
valente dirigente e cruel guerreira humana, ao mesmo tempo servindo
como sacerdotisa da deusa da guerra.
Andraste ou Andred cujo
nome significa ”A Invencível’ era uma deusa irlandesa equiparada com
Andarte cultuada na Gália e com características semelhantes à Morrighan,
sendo evocada na véspera das batalhas para garantir a vitória.
Os romanos diminuíram seu status para uma deusa lunar (por ser a lebre
seu totem) e a associaram ao amor e fertilidade. No entanto, o arquétipo
original de Andraste é de uma deusa escura e ceifadora, invocada apenas
nos momentos de extrema necessidade, pois ela exigia sacrifícios de
sangue humano, considerado o mais potente substrato mágico.
Ela
controlava os fios da vida de cada ser humano, do nascimento até a
morte, pois a morte era parte inevitável da vida. O seu lado sombrio (da
anciã) era amenizado pelos seus atributos de deusa lunar, regente do
amor e da fertilidade (como mãe criadora da vida) e regente da caça (na
sua face de donzela).
O aparente paradoxo entre os aspectos e
naturezas das deusas celtas reflete a profunda compreensão do processo
de dar/receber, nascer/morrer, começo/fim.
Muitas deusas
aparecem como figuras promíscuas e destrutivas, mas elas personificavam
aspectos da natureza, como a fertilidade e a soberania da terra, que
tinham que ser defendidas a qualquer preço para assegurar a
sobrevivência dos descendentes.
A criação e a destruição são
processos interdependentes, existe uma ausência de vida na escuridão da
terra que recebe os mortos, mas também é a terra escura que abriga e
promove o desabrochar das sementes, que renascem - assim como os mortos
nela enterrados - para uma Nova Vida.